domingo, 5 de maio de 2024

A Verdadeira História do Coelhinho da Páscoa

 

A primeira folha dos rascunhos originais, escritos em
guardanapos de papel, frente e verso em 1996.

A Verdadeira História do 
Coelhinho da Páscoa


O que aconteceu com o Sr. Coelho da Páscoa, espero, não aconteça com ninguém, muito embora todos sabem que se trate de uma situação normal nos dias de hoje.

Nossa história começa em uma pacata cidadezinha do interior, em janeiro.
Todo mundo que morava naquela cidade depositava a maior fé no jovem que havia acabado de conseguir o seu primeiro emprego na Granja Fertilidade. Ele era o entregador de ovos. Dinâmico, alegre e jovial, alegrava a todos com seu espírito solidário e contagiante. “ Bom dia dona Peluda! Como vão as crianças?” – Dizia para uma. “Olá sr. Cascudo! Tome este pequeno brinde para o seu filho!” – Dizia para outro.
Acordava cedinho. Chegava ao serviço com pelo menos uma hora de antecedência e gostava do que fazia. Era tão conhecido e querido na cidadezinha, que todos achavam que logo logo ele chegaria a diretor da granja, ou quem sabe, mais pra frente, a prefeito da cidade. As crianças não podiam vê-lo que já faziam festa, e ele brincava  com todas, como se fosse uma delas, apesar de já estar com dezoito anos!
Por causa disso, a granja prosperava. As pessoas até compravam mais ovos apenas para terem em suas casas a presença alegre do coelho, que motivava as crianças, com sua atividade. “Quando eu crescer quero ser trabalhador e alegre como o Coelho!” - Dizia um menino. “E eu, quando crescer, quero ter a mesma vida feliz que o coelho tem” – Dizia outro menino!
A prosperidade da Granja chegou a tal ponto, por causa do coelho, que resolveram, naquele ano, dar um brinde às crianças da cidade, filhos dos fregueses. Escolheram o mês de abril, logo depois de um feriado prolongado, quando então todos iam para a praia. Supunham que, na praia comessem muito peixe, então era preciso balancear o cardápio com chocolate. Fizeram então pequenos doces de chocolates em forma de ovos, que depois eram enfeitados com pinturas diversas. Se, por acaso durante todo o ano as vendas fossem boas, eles repetiriam , no ano seguinte, a entrega dos brindes.
E quem iria entregar os ovinhos de chocolate era o coelho!

Aconteceu que dias antes do dia da entrega dos brindes, abriu-se um ponto comercial novo na cidade. Uma  padaria, pertencente à uma família de porcos. Os porcos eram muquiranas e, contradizendo os costumes da cidade, como fazia a granja, não vendiam fiado, vendiam caro e não davam brinde pra ninguém. Logo se tornaram antipáticos com todo mundo.
No dia da entrega dos ovos de chocolate, o coelho saiu com uma enorme cesta nas costas, assobiando. O dia seria de festa para ele. Nos lares que iria, festejariam a sua presença e ele já estava até prevendo a alegria da criançada. 
Quando passou pela padaria dos porcos viu uma criança lá dentro. Pensou consigo mesmo: “Opa! Lá está uma criança nova na cidade! Vou dar um brinde a ela também!”. E entrou na padaria.
Justamente naquele dia, os porcos estavam comemorando a sua Páscoa. Estavam comendo pão e o ofereceram ao coelho, que aceitou, pois nunca havia comido pão. Ao sair deu um ovinho de chocolate para a criança e o dono da padaria, um porco já idoso, contente de ter recebido a visita, o seguiu até a porta dizendo-lhe, quando já estavam na calçada: “Você acaba de participar da Páscoa dos Porcos!”

Algumas pessoas que passavam por ali ouviram isso. Eles não gostavam daqueles porcos e começaram a espalhar a notícia que, de boca em boca ganhava contornos diferentes: “Sabia que o coelho participa da Páscoa dos Porcos? Sabia que o coelho é o coelho da Páscoa dos Porcos?”; Sabia que o coelho é porco e da Páscoa?” E assim foi.
Logo os moradores já estavam falando com ele dessa forma: “O da Páscoa! Pode me levar uma dúzia de ovos amanhã?”; “Ô da Páscoa! Três dúzias amanhã ta?”, etc..
O coelho não estava gostando nada daquilo. Os moradores o estavam associando com os porcos antipáticos. Isso estava afetando até o seu desempenho, porque algumas chamadas era de ironia: “O coelho porco! Porque você finge que é legal, ao contrário dos seus ‘parentes?’”
A situação foi, gradativamente piorando. As crianças, que, por ordem dos pais não entravam na padaria dos porcos, também não brincavam mais com o coelho, porque passaram a pensar que ele era “um deles”.

Os fregueses do coelho, pouco a pouco deixavam de comprar os ovos da granja, apenas para não ter que receber a visita do coelho em suas casas. Este já não andava mais sorridente nas ruas, cumprimentando todo mundo. Agora já sentia o peso da indiferença.
A diretoria da granja percebeu a situação e chamou o coelho:
- Olha! Infelizmente não podemos mais mantê-lo aqui. Nossas vendas caíram e temos que cortar despesas. Esperamos que compreenda! Temos que lhe dar as contas! Mas, quem sabe, mais pra frente, quando a situação melhorar, nós o recontrataremos! Até lá, se precisar de alguma indicação, ou alguma carta de apresentação, pode contar conosco, tá legal? Boa sorte! "Ingratos" - pensou ele - "Eu sei que a situação não está assim tão ruim a ponto de me dispensarem".

Com este 'pé na bunda'  o jovem coelho estava desempregado! Pior. Não haviam pago seu último salário nem os seus direitos “na próxima segunda-feira” como havia prometido. E ele ainda ficou sabendo que o dono da granja, de raiva dele, resolveu não pagá-lo, a não ser por meio da justiça.
 A briga do coelho com a granja na justiça foi longa, penosa e cheia de episódios humilhantes para o coelho. Difamaram-no até não poderem mais, e ele teve, ao final do processo, que se contentar com um acordo injusto, porque já estava precisando muito do dinheiro. 40% do valor total e mais nada! Dinheiro esse, que quando veio, dois meses depois, não era nem para pagar as dívidas, mas para comer!
Enfim! Ele era jovem e daria a volta por cima. “Novo dia, vida nova” pensava. “Vamos novamente à luta”. No outro dia, cedinho, saiu, munido de seus documentos, para preencher fichas. Foi nas fábricas, nas lojas, nos barzinhos e nas padarias, inclusive na padaria dos porcos antipáticos, e nada. Ninguém estava precisando de empregado.
No outro dia, a mesma coisa. Preenchia fichas e nada. Passou assim mais dois meses. Estava vivendo praticamente de bicos que mal davam para a comida do dia a dia.
Certa noite, sentado no sofá da sala, mais magro, abatido e preocupado com os dois meses de aluguel atrasado. O coelho já estava quase chorando, quando bateram na sua porta.
Era a Dona Orelhuda, uma coelha, vizinha dele, que, diferentemente do resto da cidade, estava meio preocupada com a situação dele.
- Olá Coelho! Mas, que cara é essa?
- É esse desemprego! Já estou desanimado com essa situação
- tenho uma boa notícia para você! Amanhã vão abrir uma loja de bombons, lá no centro da cidade! São parentes meus. Pessoal novo na cidade e não conhecem ninguém ainda. Vão precisar de entregador com prática. Acontece que a Nariguda, amiga minha vai trabalhar lá no escritório. Eu falei com ela sobre você e ela já arranjou tudo! É só você aparecer lá bem cedo, com os seus documentos, que ela vai te contratar, tá?
O Coelho quase chorou de emoção:
- Obrigado Orelhuda! Olha! Deus lhe pague tá! Não sei como te agradecer!
No dia seguinte, lá estava o Coelho na porta da loja. Quando foi chamado ficou radiante com a possibilidade do novo emprego, entrou rápido. Fez a entrevista e esperou pelo resultado. Aprovado! Agora era só preencher a ficha de cadastramento: RG, CIC, Título de eleitor, Certificado de Reservista, Carteira de Trabalho e... uma carta de referência do último emprego.
O Coelho preencheu tudo direitinho, mas, quanto a carta de referência, teria que ir buscar na antiga granja. E isso ele não conseguiu.
A granja não queria nem recebê-lo! Além de negarem a carta ainda ligaram para a loja para falar mal dele, dizendo que ele era vagabundo e charlatão. Que gostava de colocar as firmas onde trabalhava na justiça “só de sacanagem”, e que, por causa dele, a granja quase tinha ido à falência.
O coelho, alheio a isso, voltou para a loja, disposto a explicar o porque não poderia ter a carta, mas, comprometendo-se a se dedicar ao máximo em seu novo serviço. Todavia, mal chegou na porta da loja, ficou sabendo que rasgaram a sua ficha.
- Merda! – Resmungava furioso -  o que esses caras querem pô? Me foder mais ainda?!
Voltou para casa completamente arrasado. Coitado! O Coelho era um jovem de boa índole, vítima, porém, de circunstâncias mal interpretadas. Passou o resto do dia avaliando suas possibilidades e chegou a conclusão que a sua única alternativa, no momento, seria continuar fazer “bicos” urgente, para salvar, ao menos, o aluguel da casa. "Se vencer três meses o dono pede e eu estou na rua." desesperou-se.
Nem nisso deu mais sorte. Ninguém queria que ele cortasse a grama do jardim ou capinasse  o quintal!
Completamente atordoado, o Coelho, contra a sua vontade, e também, para matar a fome, começou a pedir de porta em porta, uma ajuda qualquer. As vezes ele conseguia um pedaço de pão ou um restinho de sopa. O aluguel porém, não deu para pagar. O dono da casa a pediu de volta! Mas para onde ele iria? Resolveu ficar. "Quem sabe acontece alguma coisa boa e eu ainda salvo a casa."
Nos três meses seguintes, somou-se à luta do dia a dia,  outra árdua batalha. Na Justiça de novo. Do coelho contra o dono da casa. Até que, finalmente, numa ação de despejo, a polícia levou os seus pertences como penhora para quitar os alugueis e o colocou na rua.
A dona Orelhuda, com dó do vizinho, resolveu ajudá-lo mais uma vez e deixou ele ficar na sua casa, até ele “acertar a sua vida”.
Foram 4 meses de relativo “descanso” para o Coelho. Ele fazia os serviços pesados da casa da Orelhuda, que lhe fornecia o que comer e onde dormir. Ela era uma verdadeira amiga dele.
Ele queria ajudar de qualquer forma. Então começou a vender as coisas que tinha sobrado para poder ajudar  a Orelhuda. E foram-se as suas roupas boas. Já não tinha mais aquele blazer que usava para ir aos bailes. Mas emprego que era bom ele não conseguia de jeito nenhum.
 Até que acabou-se. O Coelho não tinha mais nada. Nada mais restava daquele jovem que a poucos meses atrás era um dinâmico exemplo do futuro daquela cidadezinha do interior. nada mais restava daquele que vislumbravam no futuro como 'o dono da cidade' e que prometia coisas novas e melhores para os da sua geração.
Pior ainda. Junto com a dissolução de todos os seus bens, foi-se também a integridade do Coelho. Desanimado já não procurava mais emprego com o mesmo entusiasmo de antes e gastava o pouco que conseguia ganhar da Orelhuda com cerveja.
- Desculpe Dona Orelhuda, mas, eu estava muito triste e resolvi beber uma pra esquecer!
- Isso é ruim Coelho! Veja se não faz mais isso viu! Não vai te ajudar em nada beber! Só atrapalhar!
Dona Orelhuda era paciente.
Passou a  pedir para a dona Orelhuda uns trocadinhos “para pegar ônibus para ir a tal firma”. “Desta vez vai dar certo dizia”. Tudo mentira. Ele ia a pé, para as biroscas mais fétidas dos subúrbios, gastar o dinheiro com pinga. E ainda ficava devendo.
Porque que nunca foram cobrar o Coelho na casa da Orelhuda? Simples. Sumia uma bijuteria aqui, outra ali. A Orelhuda não percebia, porque eram coisas que dificilmente ela usava. O Coelho, ou vendia, ou dava como forma de pagamento das pingas.
O vício, pouco a pouco, tomou conta do Coelho. E vício custa dinheiro. Varais das redondezas começaram a ser furtados. Bicicletas encostadas também.
Ficava dormindo até tarde e passava a noite toda na rua, não raro envolvido em brigas. “É uma fase ruim” dizia à Orelhuda.
Envolveu-se com maus elementos. Passou a fumar maconha. Com o tempo passou a fazer entrega de maconha para os viciados da região, para manter o próprio vício.
A coisa estava indo assim, até que um dia o coelho foi guardar um pacote de droga na casa da Orelhuda e ela viu.
- Então é verdade que você está envolvido com drogas! Olha Coelho, sinto muito! Mas, você não pode mais continuar aqui! Procure outro lugar hoje mesmo! E quanto a essa droga aí, pode tirar daqui, imediatamente! Aqui é casa de gente honesta!
O coelho, irritado e, sob efeito de droga, brigou com a Coelha. Numa dessas fatalidades impensadas, ele a golpeou com uma faca de cozinha e a matou. Ele havia pego a faca apenas para “assustar"  a Orelhuda, mas, sem pensar acabou, varando-lhe o coração.
Moído de remorso, medo e desespero, o Coelho enterrou o corpo no quintal.
Passou o dia dentro da casa, pensando em fugir dali, para um lugar bem longe. Arrumou umas malas, com tudo o que tinha de valor dentro da casa e já estava saindo quando a polícia chegou. A vizinhança havia notado o barulho de briga e depois o silêncio da Orelhuda o dia todo, que não saía para fofocar com as vizinhas. Sendo isso não anormal resolveram chamar a Polícia.
Rastreada, pelos cães dos policiais, a Orelhuda foi achada no quintal. O Coelho foi preso em flagrante.
Acusado de latrocínio, estupro e tráfico, o coelho mal conseguiu se defender no tribunal. Seu advogado, cedido pelo estado, não conseguiu nem sequer diminuir-lhe a pena, de 30 anos, dos. O coelho foi enviado para um presídio, onde, no começo, apanhou muito e só não morreu, porque conseguiu convencer os presos que o crime de estupro foi “plantado”.
Depois disso, começou a sua longa jornada de cativeiro. O Coelho agora, já não era mais um cidadão. Ele era alguém que a sociedade havia rejeitado e transformado em bandido. “E tudo por que eu fui dar um simples ovinho de chocolate para uma porquinha”. Não cansava de dizer.
Nos 35 anos em que o Coelho ficou preso (porque quando venceu os 30 ele foi considerado "perigoso demais" para viver em sociedade), aquela cidadezinha cresceu. Se desenvolveu. Não restava mais nem a lembrança das ruas de terra, das crianças brincando de bolinha de gude no meio da rua, por onde não passava um carro sequer. Agora já não havia mais as fofoqueiras de muro de quintal e nem festinhas juninas com ruas fechadas. Era só o capitalismo selvagem. Pessoas frias, apressadas e distantes, correndo contra o tempo, em busca de sucesso financeiro e posição social.
Aquela antiga granja se transformou porque diversificou seus negócios. Agora vendia não só ovos, mas também derivados de ovos. E continuou com o antigo hábito, iniciado com o Coelho, de dar como brindes, ovos de chocolate para os filhos dos fregueses todo ano em abril. O filho do falecido dono da granja adotou como enfeite para esses ovinhos, um coelho. Mas porque adotou esse símbolo para seus brindes? Porque havia pego a ideia do velho porco, dono da velha padaria, que uma vez lhe disse sobre um tal “coelho na Páscoa” que lhe visitou muito tempo atrás.
Agora eram os ovinhos do “coelho da Páscoa”. Diziam também que coelhos e ovos eram símbolos da fertilidade, e fertilidade era a ordem do dia naquela rica cidade agora.
Finalmente o Coelho saiu da prisão. Mas ele não conhecia mais ninguém e ninguém o conhecia. Não existia mais a casa da Orelhuda...ela fora derrubada, junto com tantas outras para a construção de ruas mais largas. E foi isso que o coelho viu, quando tentou procurar a casa: Apenas uma rua asfaltada. “Cadê as árvores?” Espantou-se!
Foi viver no albergue para mendigos, bêbados e vagabundos. Onde passava o dia tentando entender o novo mundo em que vivia, onde ninguém mais sorria ou chorava, enquanto esperava a sopa dos pobres.
Ainda com esperança de arranjar o que fazer, para ver se dava um jeito no resto da vida, ficava oferecendo-se  para fazer bicos. Qualquer coisa. Porém, simplesmente, dava-lhe as costas. Quem iria querer um velho de quase 60 anos?
Chegou até a Reconhecer algumas das crianças de sua época de jovem. Algumas eram agora professores ou magistrados, com mulher e filhos. Mas, ninguém se lembrava mais dele.
Foi assim que, numa bela manhã do dia 9 de abril, enquanto o Coelho, sentado na sarjeta em frente ao albergue, chorando e falando sozinho, chegou-lhe perto uma criança. Esta parou na frente dele, com um saco de ovinhos de chocolate e com um boné com duas orelhas de coelho na cabeça, onde se lia o nome do local de onde tinha vindo.
- Bom dia velho coelho! Eu sou o 'Coelhinho da Páscoa'! Tome esse ovo de chocolate em nome da “Granja Fertilidade.”
O Coelho olhou para ele e o fitou por alguns instantes. Depois baixou os olhos e aceitou o ovo. Comeu-o depressa, mais de fome do que de alegria de tê-lo recebido.


Fim.




Acyr Campos filho
Escrito originalmente em 06 de abril de 1996

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